Já imaginou percorrer 1/3 da superfície da Terra num carro velho e sem perspectiva alguma de chegar ao destino final? O documentarista carioca Raphael Erichsen também não imaginou, mas ele fez. Participante do Rally Mongol, uma viagem insana com viés filantrópico, ele percorreu da Inglaterra a Mongólia com amigos e transformou todas as roubadas e desventuras – que não foram poucas! – dessa jornada em uma série e um livro.
Só para te situar na ideia, nesse rali de mais de 16.000 km o primeiro a chegar não é considerado vencedor, muito pelo contrário. As equipes têm que estar a bordo de carros velhos (quanto pior melhor) e quanto mais estranho for o seu veículo, mais legal é a sua equipe. Tem de tudo, carros de pelúcia, banheiras no capô e até touro mecânico no teto. O prêmio? Doar os veículos para uma ONG que cuida de crianças abandonadas na capital da Mongólia.
A viagem que mais parecia um filme de “altas confusões e muitas aventuras” (e que depois virou série do Multishow) aconteceu em 2012, obviamente quando o Raphael não estava num bom momento de sua vida pessoal. Com uma vida tediosa, o término do casamento, seguido de uma síndrome do pânico, recebeu um “chamado do além”, ou o que acredita-se ter sido um telefonema inesperado de três amigos com esse convite irrecusável. Com medo na mesma proporção de sua curiosidade, e somado à crise existencial, disse sim. Coitado.
Superando limites físicos e emocionais, o rali de um mês transformou completamente a vida de Raphael. Afinal de contas, como se pode passar ileso de uma paixão avassaladora por uma neozelandesa, uma festa num castelo medieval na República Tcheca, uma perseguição de ciganos na Transilvânia, uma noite tragicômica-almodovariana na cobertura de um hotel em Istambul, uma fuga da polícia no Cazaquistão e um sequestro no meio do deserto Mongol?
Envolvido na cena musical underground carioca, ele já teve banda e selo, mas resolveu focar mesmo na carreira de cineasta e documentarista, o que lhe rendeu prêmios e um portfólio interessante: entre outras coisas, escreveu, dirigiu e editou o documentário “Superstonic Sound”, sobre o lendário DJ Don Letts, exibido em mais de 40 países; também dirigiu o documentário “Radical”, sobre o lendário surfista Dadá Figueiredo e assina o filme “Ilegal”, sobre a batalha de algumas famílias brasileiras para conseguir importar remédio a base de maconha para filhos com epilepsia.
Conversei com ele sobre essa e outras doideiras da vida. Afinal, não é qualquer um que sobrevive a tudo isso para escrever um livro de anti-ajuda, uma versão bizarra e estúpida de ‘Comer, rezar e amar’. E não, não sou eu que estou falando!
Nômades Digitais (ND) – Você poderia imaginar que, em algum ponto da sua vida, chegaria até a Mongólia num rally? Essa foi sua maior realização pessoal?
Raphael Erichsen (RE) – De jeito nenhum! Antes do rali, eu não tinha ido nem a Ilha Grande acampar. Apesar de adorar viajar e trabalhar com documentários, nunca me imaginei como um cara que poderia frequentar áreas de conflitos ou coisas do tipo. Antes de saber do Rali Mongol eu nunca tinha imaginado que nenhum ser humano em sã consciência faria algo do tipo. Quando fui convidado para fazer o rali aquilo me causava um medo e uma insegurança profunda. Eu tinha muito medo do que podia acontecer, ainda por cima estava muito fragilizado pelo momento que estava passando na vida. Mais do que completar o rali, passar por toda aquela experiência me fez enxergar a vida por outra perspectiva e a realização passou a acontecer todos os dias depois de voltar e tentar chegar na Mongólia metafisicamente todos os dias.
ND – O que mudou desde a sua volta dessa jornada épica? Faria de novo?
RE – Posso dizer que minha vida mudou 100% depois dessa jornada, mas não acho que seja o rali em si que tenha feito isso e sim a maneira que eu encarei ele. São muitas equipes fazendo o rali todo ano e tenho certeza que para um monte de gente essa história é só uma viagem de férias radical. Acontece que quando você está em busca de algum sentido para sua existência uma experiência como essa pode ser um gatilho e tanto… Agora… não sei se faz tanto sentido tentar repetir a experiência. Adoraria fazer de novo, mas seria mais pelo prazer do que pela descoberta… Por outro lado, o rali te provoca a pensar que existem tantas experiências incríveis para se viver pelo mundo que tentar repetir a experiência pode ser uma perda de tempo.

ND – É comum que, no meio de certos perrengues e até de um vazio existencial, as pessoas tendem a sair de sua zona de conforto. Com você, foi meio que culpa do acaso, não? O que teria acontecido se seus amigos não tivessem te ligado com o convite?
RE – É verdade, nunca tinha pensado nisso. Não faço ideia do que teria acontecido comigo se não tivesse recebido aquele telefonema. Com toda certeza foi uma sorte danada ser jogado naquele circo de uma maneira totalmente abrupta. Tenho uma tremenda gratidão pelos amigos que me colocaram nessa. Mas a vida dá esses golpes e a gente tem que saber aproveitar. O livro é bastante sobre isso, sobre a capacidade de se reinventar e virar a vida de ponta cabeça. Os acasos acontecem o tempo todo, mas a gente tem que saber como identificá-los e usar ao nosso favor. Acho que, em geral, as pessoas têm muita preguiça de viver uma vida criativa. Pelo menos a média. Isso não se aprende na escola, né? A gente aprende português, matemática e química inorgânica, mas não aprende que podemos encontrar maneiras mais criativas de viver a vida.
ND – Nessas situações loucas, acredito que a insegurança é uma constante. Àquela altura do campeonato, você sentia mais medo do que vinha pela frente, do desconhecido, ou de voltar pra casa e desistir?
RE – Pensava em desistir todos os dias. E torcia para que os meus companheiros de equipe resolvessem desistir também. Nós éramos as pessoas menos preparadas para estar naquela situação. Eu pensava no Cazaquistão, Turcomenistão e todos aqueles “istãos” e me dava calafrios. Traçava rotas no google maps e elas não existiam, aquilo não fazia nenhum sentido para mim. Eu tinha um medo danado do desconhecido e acabou que enfrentar esse medo se tornou uma ferramenta de empoderamento tremenda para mim.

ND – Além do rally ter uma proposta mega interessante, é também uma ação filantrópica. Ajudar o próximo, mesmo que de um jeito tão maluco, te trouxe um novo olhar para os problemas sociais?
RE – Meu trabalho como documentarista já é totalmente ligado a viver em sociedade e, principalmente, tentar ler a sociedade de uma maneira mais consciente. Mas é claro que o Rali Mongol ter um propósito ressignifica totalmente a experiência. Na linha de chegada, depois de cruzar a Mongólia inteira, a gente é convidado a conhecer os problemas das crianças na Mongólia e ter contato com a figura que criou o Lotus Charity que é quem recebe as doações. Aquilo é a cereja do bolo para você repensar a sua existência mesmo. Então o que parece só uma puta maluquice na verdade é uma baita maneira para pensar em um mundo melhor para todos. Hoje, a bandeira do Rali mudou da época em que eu fui: agora as doações são para combater o aquecimento global.
ND – O percurso passa por lugares do Oriente Médio que muita gente sequer pensa em colocar os pés. Houve essa quebra de paradigmas e preconceitos da sua parte? Qual país mudou o seu olhar?
RE – Sabe uma frase que eu ouvi muito na linha de chegada? Que a gente tem que parar de enxergar o mundo pelas lentes da CNN. É muito verdade, a gente conhece o mundo editado por terceiros. Nós fizemos uma rota pelo norte, mas vários times foram pelo sul. Já passou pela sua cabeça que o Iraque pode ser um lugar incrível? Parece maluquice, não é? Mas não é. O Iraque é um país enorme, tem áreas de conflito e áreas que não são. O que a gente acha que as pessoas de fora pensam do Brasil? Aqui se mata mais do que qualquer área de conflito no mundo e a gente acha que vive na Disneylândia.

ND – Depois de passar por tantas aventuras, qual foi o lugar ou a cena que mais te marcou durante o percurso?
RE – Eu falo muito da Mongólia, mas o lugar que me apaixonei mesmo foi o Cazaquistão porque é um país que até hoje eu não consegui decifrar. Uma ex-União Soviética vivendo um momento de crescimento da economia mas ao mesmo tempo com lugares que parecem tão pouco desenvolvidos e vivendo no século retrasado. Não consigo nem dizer se é um povo hospitaleiro ou completamente maluco, um pedaço do planeta do qual pouco se fala e que é tão difícil de entender. Talvez seja por ser aquele lance de a gente ver o mundo pelas lentes da CNN e a única imagem que eu tenho daquele país ser o Borat. Só sei que saí de lá e não entendi, e isso para mim é profundamente instigante.
ND – Qual foi a coisa mais difícil que aconteceu na estrada e como você fez para resolver?
RE – Sem dúvida o momento mais extremo foi o nosso resgate, quando o nosso carro morreu definitivamente no meio do deserto mongol. Foi uma situação incrivelmente difícil para todos nós e foi quando o nosso time teve que se separar e cada um resolver parte do problema sozinho. Foi uma grande sucessão de erros mas também foi quando aprendemos que precisávamos confiar um no outro e essa foi a chave para a gente sair daquela situação com vida. No final, o rali é sobre isso, sobre confiar, aprender todos os dias coisas novas e ter a humildade de que somos formiguinhas nesse planeta.
ND – Você disse que seu livro é uma versão bizarra e estúpida de ‘Comer, rezar e amar’. Quais três palavras se encaixariam melhor nesse título para a sua versão da história, (e sem a Julia Roberts no elenco!)?
RE – Hmmm… essa é difícil, nunca tinha imaginado. Pensando nos conceitos chaves acho que seria “Correr, errar e confiar”. Parece legal, mas acho que o nome certo para essa história é Tudo Errado. Se tivesse uma atriz para interpretar, acho que tinha que ser a Juliette Lewis ou a Winona Ryder 😉

ND – Pelo seu trabalho como documentarista, posso deduzir que você curte mais um lance de “vida real”, pé no chão, do que ficção. Participar do rally te trouxe a sensação de estar vivendo uma coisa tão louca que só poderia ser mentira? Rolou aquele sentimento de “o que eu tô fazendo aqui?” ou foi mais uma satisfação pessoal?
RE – De certa maneira sim, pelo lado da ficção aquilo tudo na verdade me parecia uma grande viagem psicodélica, sem fim e nem começo. Durante toda a viagem eu não tinha a menor noção do que estava fazendo ali. Uma loucura sem fim. Uma insanidade sem fim. Parecia uma viagem de ácido que eu não sabia quando ia acabar. Hoje, olhando com distanciamento, penso naquilo como uma história vivida por outra pessoa e que eu gosto de contar. Aquele cara que fez aquela viagem já não existe mais. E mesmo a história que eu conto no livro é um romance daquilo que vivi, não sei dizer o que é realidade e o que são coisas de uma mente perturbada.
ND – Você está acostumado com o audiovisual no seu trabalho. Como foi a experiência de escrever um livro e reviver suas memórias pessoais?
RE – A grande diferença de escrever um livro é que dessa vez eu sou o protagonista e tentei me entregar profundamente nessa experiência. Entrego meus maiores medos e maiores prazeres. Um grande exercício de se expor, de estar nu. Não é muito fácil, mas é extremamente libertador. Acima de tudo, foi uma maneira de tentar enxergar o que eu estava fazendo da minha vida e conseguir assistir isso com algum distanciamento. Nos meus filmes, sempre tento contar uma história que me interessa por meio da história dos outros – dessa vez o experimento sou eu e acho que estou me sentindo muito bem como uma cobaia.

ND – O que você aconselha para quem quer viver uma aventura dessas?
RE – O que eu sempre digo é que o Rali Mongol é um gatilho que serviu para mim. Não é que sirva para todo mundo e acho que cada pessoa pode encontrar a sua Mongólia, seja ela o que for. Pode ser um filho, um relacionamento, uma causa. É se jogar no desconhecido e deixar as coisas acontecerem, mas, acima de tudo, deixar que as coisas saiam do seu controle.
ND – Depois de tudo isso, você ainda acha que vai continuar fazendo tudo errado ou o “todo errado” é você? Seria um lifestyle?
RE – Tudo errado para mim virou o meu mantra, uma piada que eu repito para mim mesmo, e foi a maneira que encontrei de me provocar, de tentar viver uma vida não conformista. Uma frase que eu ouvi do Buddy (que é o “host” do rali) foi: “Imagina você acordar todo dia sem saber onde você vai dormir”. Não que seja fácil, mas eu queria encontrar uma maneira de fazer com que a vida fosse todos os dias assim. Simplesmente encontrar uma maneira mais criativa de viver a vida e reinventá-la todos os dias.




Todas as fotos por © Raphael Erichsen
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